Os quadros apresentados em “Os trabalhos e os dias” constituem uma seleção, um fragmento apenas da obra de António Fernando.
Se refletem uma das abordagens possíveis ao seu universo criativo, estão longe, porém, de o esgotar.
Quando pela primeira vez, em 2014, pensou nesta exposição, António Fernando imaginava-a como uma espécie de viagem balizada no tempo. Em 2004 realizara a sua última grande exposição, na Biblioteca Almeida Garrett. Dez anos depois regressar ao mesmo local, embora com novos trabalhos, para assinalar e deixar como memória o quanto fora produzido nesta última década, revelou-se ser uma impossibilidade prática.
A ideia de aproveitar o espaço da Casa do Infante nasceu de uma conversa com o vereador da cultura da Câmara Municipal do Porto, Dr. Paulo Cunha e Silva. Ele próprio sugeriu, num primeiro momento,que nesta espécie de regresso às origens, visto António Fernando ter nascido bem próximo desta Casa, ficasse exposto apenas o tríptico concebido ao longo dos últimos anos. Ficou depois evidente que o espaço disponível comportava uma ambição maior e logo ficou consolidada a ideia de juntar outros trabalhos, nascidos de outras vontades narrativas, outras reflexões pictóricas. De fora fica, ainda assim, uma infinidade de óleos, aguarelas, desenhos,
reveladores de uma invulgar maturação criativa e de uma singular capacidade do pintor para recriar diferentes mundos, novas vivências, outros tempos narrativos, diversas sensibilidades estéticas.
No emaranhado de obras acumuladas no ateliê de António Fernando há uma em particular – presente nesta exposição - que me chamou a atenção numa visita recente. Três mulheres. Uma sentada à esquerda, uma de pé, ao centro, ambas nuas. Uma sentada à direita, apenas aconchegada por um delicado manto branco que
lhe cobre parte do corpo. Estão próximas de uma portada branca semiaberta e na parede do fundo há uma tela com uma figura
estilizada. No chão, sobre um pano branco, uma chávena – que vai aparecer noutros quadros de António Fernando como mais um elemento das suas muitas auto-citações – com um cravo vermelho ao lado.
Deixa-nos o olhar cativo a ternura, a sensibilidade, a suavidade dos tons cromáticos utlizados, o tempo de reflexão silenciosa captado, a sensualidade desta espécie de adágio, assim entendido por a suspensão contida na cena nos remeter para a noção de que algo mais está para vir ou acontecer. Há como que uma atitude de espera, tal como sucede num concerto, em que o adágio surge como segundo movimento, a anteceder o expectável, mas desconhecido final.
Por contraste com o que nos mostra o Tríptico, poderia dizer-se que, naquela, como noutras telas, António Fernando opta por recriar uma visão mais onírica de uma outra dimensão do seu imaginário.
É um quadro atravessado por um subtil enlevo poético que se embrenha numa cena suspensa de uma visão sedutoramente íntima.
É esta emocionante capacidade de António Fernando para escancarar as portas todas dos sentimentos todos que lhe permite construir momentos na aparência tão díspares. Uns marcados por uma estranha melancolia. Outros dominados pela vontade do silêncio.
Outros ainda agarrados a um profundo sentido de resistência, onde se confundem paixão e rebelião, em nome de um amor profundo: o prazer do desenho, o infinito desejo de colocar a pintura no pedestal. Como se fora algo de divino. Numa espécie de sacralização de uma certa ideia de arte empenhada em demonstrar que nenhuma estética resiste à ausência de ética.